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sexta-feira, 10 de julho de 2009

Para onde foi a reorganização?

Para onde foi a reorganização?

Avaliação do Grupo Além do Mito sobre o Congresso Nacional de Estudantes

Este é um documento síntese do debate interno do Grupo Além do Mito... sobre a reorganização do Movimento Estudantil e as consequências do Congresso Nacional de Estudantes para este processo, o qual, por decisão do Grupo, se faz público. Busca-se um entendimento preliminar e tão detalhado quanto o possível, tendo em vista o momento em que é produzido este texto (em torno de um mês após o congresso) de em que ponto se chega da reorganização e de como se chega até ele.

Como a luta de massas não mais se faz de forma direta (e este é um dos traços do momento contra-revolucionário que vivemos), mas através da mediação do burocratizado aparelho sindical e partidários (seja ele PT ou organizações menores, como PSTU, PCdoB, etc.), a luta por espaço no interior destes aparelhos substitui a militância dos revolucionários junto às massas”. - Sérgio Lessa em Crítica ao Praticismo “Revolucionário”.

O Movimento Estudantil (ME) brasileiro encontra-se frente a uma profunda necessidade de reorganização própria. Esta reorganização vem se dando em um processo que conta com avanços e recuos iniciado no princípio desta década. Em 2003, como expressão desta necessidade, ocorre o rompimento de vários setores do ME com a União Nacional dos Estudantes (UNE). Seis anos depois, tem lugar o Congresso Nacional de Estudantes (CNE), a maior iniciativa levada à frente na tentativa de sintetizar o acúmulo conseguido pelo Movimento durante este período. Tendo lugar na UFRJ, entre os dias 11 e 14 de Junho, o CNE e suas consequências, entre elas a fundação de uma nova entidade estudantil, a Assembléia Nacional dos Estudantes – Livre (ANEL), levam este processo a uma situação distinta de que tivemos até o momento.

Antes da tomada de novos passos, antes mesmo da formulação das próximas políticas conjuntas do ME, é imprescindível uma avaliação do que significam estes novos elementos e sua presença no cotidiano estudantil daqui para frente. É necessária uma avaliação da situação geral do Movimento Estudantil pós-CNE. Esta discussão não se poderá fazer de forma consequente descolada das implicações recíprocas que tem em relação ao período que a precede. Ou seja, de um resgate do que representou a ruptura com a UNE, as tentativas anteriores de aglutinação por fora desta entidade, as lutas que se deram neste contexto e uma série de diversos elementos que não poderão ser deixados de lado.

É certo que viveremos um período de consequências, após o Congresso, do qual podemos apenas vislumbrar seu início. Sem dúvidas, o devido recuar da história trará mais elementos e maiores recursos para a construção desta discussão, não podendo ela se pretender acabada aqui. Porém, é a dinâmica do movimento real que exige, hoje, uma explicitação, ainda que preliminar, do momento histórico pelo qual passarão os estudantes. O objetivo do Grupo Além do Mito e deste documento é contribuir com este debate, sem o medo de enfrentarmos-nos com o tribunal da auto-crítica futuramente, ou mesmo de pôr em prática as posturas que nossos possíveis acertos demonstrem necessárias.

De como chegamos até aqui ou do que significa a ruptura com a UNE.

A história do Movimento Estudantil é bastante documentada e, por este motivo, aqui tentaremos suprimir a discussão acerca dela em-si, mas ressaltar os pontos que se apresentam como mais relevantes para o debate em tela. Após os anos de chumbo da Ditadura Militar, durante os quais representou o espaço qualitativamente superior de aglutinação dos estudantes em luta contra o regime e pelo resgate de uma democracia constitucional, a União Nacional dos Estudantes é refundada em um congresso que, talvez por ironia histórica, deu-se exatos trinta anos antes do CNE, em 1979.

Como é bastante evidente, a discussão do papel desta entidade não se pode fazer separada de uma reflexão sobre o próprio caminhar da esquerda brasileira. O período da redemocratização traz, junto com ele, um impulso a uma institucionalização cada vez maior das maiores organizações populares deste período. Somado ao processo de refluxo e de repetidas derrotas às quais é submetida a classe trabalhadora, esta institucionalização faz a luta no interior da esfera parlamentar passar, cada vez mais, a figurar como principal preocupação destas organizações. Por outro lado, as que conseguem ultrapassar a barreira parlamentar, em sua grande parte continuam perdidas nas preocupações com o jogo político geral, deixando de lado a centralidade da estruturação estratégica do trabalho para um enfrentamento direto ao capital. As consequências para as entidades que, como a UNE, possuem o papel de sintetizar a resistência popular aos projetos postos em movimento pelo capital não poderiam ser menores. É desnecessário dizer que esta tática política, de viés geralmente reformista, não pode levar os trabalhadores a qualquer outro lugar senão à mais profunda vala da derrota. Ainda assim, ela vai se tornando sempre mais presente e é cada vez mais difícil de afastar seu legado para o movimento.

A inversão do papel da ação direta dos trabalhadores e estudantes em relação à atividade parlamentar, fruto de uma impossibilidade de um diálogo frutífero com as bases sociais destes movimentos devido ao momento histórico de crise geral de alternativas para a classe que se vive, vai abrir as portas para o desenvolvimento do processo de burocratização, mais ou menos consciente, que os atinge em praticamente todos os seus níveis. Esta realidade irá justificar a valorização, cada vez maior, da disputa da direção das entidades, especialmente as que, supostamente, possuiriam maior área de representatividade e, por isto, maior peso na política nacional. É o caso da própria UNE e da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Tratando especificamente do caso da entidade estudantil, embora os traços que serão citados sejam também, em partes, idênticos à central sindical, este processo se matura de maneira gradual durante as últimas décadas. As principais consequências são, justamente, a morte da democracia interna da entidade, levada à frente pela necessidade de suas direções em agarrar-se a seu aparelho, possibilitando a sua cristalização e, como não poderia ser diferente, o engessamento e o afastamento cada vez maior da UNE de suas bases e da luta estudantil.

Este processo vai se tornar inegável de tão explícito a partir da chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) à presidência da república. Com a eleição de Lula em 2003 a UNE demonstra-se, de maneira clara, como uma mera correia de transmissão do governo frente ao movimento. Seu principal papel será o de, sob um discurso democrático, camuflar a verdadeira face cruel e neoliberal das políticas aplicadas pelo Governo Federal tanto na educação, quanto em diversas outras esferas.

Passando de mala e cuia para a defesa do projeto do capital a UNE, que apesar de sua inerente burocratização ainda esboçava sinais de resistência em períodos anteriores a Lula, deixa em um vazio organizacional o Movimento Estudantil combativo. Este contexto vai impulsionar a ruptura que se dá em 2003.

É necessário, contudo, precisar o real significado desta ruptura. Ela não se dá simplesmente pelo fato de que a UNE, hoje, não organiza a necessária oposição aos projetos do capital para a educação e a sociedade em geral. Muito mais profundo do que isto, a ruptura com a União Nacional de Estudantes não deve significar, apenas, o abandono do aparelho que ela representa. Não é um rompimento meramente político. É uma negação, não apenas das bandeiras atuais da entidade, mas das concepções que a dirigiram para isto e dos métodos de movimento que garantiram este processo mesmo sem sua aceitação real nas bases. É uma ruptura construtiva e em construção, posto que sua principal função é a de resgatar os princípios de um Movimento Estudantil classista, combativo e autônomo, capaz de tomar para si as bandeiras da classe operária e da superação da sociabilidade do capital, se não enquanto tarefa da ordem do dia, pelo menos enquanto estrutura estratégica de atuação. Somente assim, o processo de reorganização poderia ser consequente em seu todo e coerente com suas própria premissa, qual seja: a UNE está morta para a luta.

Dos caminhos e contradições da reorganização.

No momento de seu acontecimento o rompimento com a UNE não poderia ter sido mais polêmico. Em verdade, somando-se os setores organizados do ME que afirmaram a ruptura com a entidade obtinha-se uma minoria do que representava o todo do movimento. Por outro lado, se quantitativamente os setores dissidentes representavam pouco peso entre os estudantes, restou demonstrado, depois de um curto período que em termos qualitativos a realidade apresentava-se de maneira diversa.

Fundada em 2004, em um Encontro Contra a Reforma Universitária, na UFRJ, a Coordenação Nacional de Lutas dos Estudantes (CONLUTE), apresentou-se como o primeiro pólo de aglutinação nacional daqueles setores que passaram a negar a UNE. Enquanto esboço de organização a CONLUTE esteve presente nos principais focos de luta que se deram no período que seguiu sua fundação, com um destaque especial para as ocupações de Reitorias que ocorreram em 2005 e os Comandos de Greve que se organizaram nas IFES naquele ano.

Em oportunidades anteriores discutimos os limites e acertos que identificamos na experiência da Coordenação. Por isto, aqui queremos destacar apenas os pontos mais relevantes para o debate posto. A CONLUTE foi a primeira tentativa de articulação nacional do Movimento Estudantil construída completamente desvinculada da União Nacional dos Estudantes. Como não poderia deixar de ser, por esta própria realidade sofreu em sua trajetória dos mais diversos obstáculos estruturais, metodológicos e, em certa medida, políticos. Exemplos são a constante confusão de funcionamento de seus fóruns (não se tinha por certo quem estaria apto a convocar reuniões e como as convocaria, qual o peso real dos colegiados estaduais e regionais que chegaram a se formar, quem tinha legitimidade para falar em nome da Coordenação etc.), a ausência de um programa de princípios claro e rígido, a frouxidão de seus métodos etc. Até mesmo o relativo sectarismo de suas posturas iniciais pode compor este rol de deficiências.

Estas questões, no entanto, encontram sua causa na própria essência do que era a Coordenação Nacional. Ou melhor, no que ela não era. A CONLUTE não era, nem se pretendeu ser, uma entidade. Não chegou a possuir regimentos, princípios, estatuto, fóruns de deliberação de bases, real legitimidade etc. E não possuía, de fato, a função de suprir esta lacuna. Seu papel foi o de ser um espaço de síntese do ME que se organizava em torno daquele que seria o início consciente do processo de reorganização dos estudantes.

Nada disto impediu que ela alcançasse méritos em seu caminho. A experiência deste instrumento trouxe pelo menos dois ganhos ao Movimento que conseguimos facilmente identificar. O primeiro deles foi a experimentação de uma nova geração de estudantes disposta a construir a luta de uma maneira qualitativamente nova, com uma reflexão mais aprofundada sobre o que representa a burocratização no seio do Movimento e um ímpeto combativo que a fez, inclusive, prescindir de entidades para organizar sua resistência ao projeto neoliberal em curso (a exemplo da própria UNE, mas também de entidades de base que encontravam-se sob o domínio do aparato governista e, por isto, engessadas, como foi o caso e o papel do DCE-UFAL na ocupação de reitoria e greve de 2005).

O segundo ganho foi a materialização, pela primeira vez, de uma crítica consequente à experiência da UNE em conjunto com a apresentação de uma postura coerente à situação vivenciada pelo ME. Ou seja, a CONLUTE teve o mérito de, pela primeira vez, formular e construir uma tentativa de diálogo com a base estudantil no sentido de apresentar e bancar a proposta de uma radical ruptura com a entidade estudantil burocratizada e governista. Este debate conseguiu enraizar-se em alguns focos do país, estando mesmo entre alguns dos locais de maior articulação das lutas, chegando a constituir colegiados estaduais da Coordenação. Além disto, teve seus reflexos mesmo no movimento de área, em que, em diversas executivas de curso, formaram-se articulações de estudantes em torno da proposta de ruptura com a UNE( podemos citar como exemplo as executivas dos cursos de Educação Física, Letras, Comunicação, Medicina, Nutrição, Serviço Social, História, Biologia etc., e mesmo em cursos sem executivas organizadas como Ciências Sociais e outros).

Mesmo com todas as limitações citadas, e graças aos méritos que também devem ser reconhecidos, a CONLUTE conseguiu, então, demonstrar algo que, anos depois, não pode mais ser negado: a luta estudantil não encontra mais possibilidades de construção por dentro da UNE. Isto acabou fortalecendo a polarização, por vezes hipervalorizada por certos setores (de ambos os lados da corda), mas realmente existente entre a CONLUTE e a antiga entidade. Sem dúvidas o sectarismo inicial dos setores da Coordenação Nacional abriu margem para equívocos de leitura geral, mas por outro lado, não se pode cair do discurso vazio de que não existiu uma concorrência real e antagônica entre os dois instrumentos. Se por um lado a UNE representava, já àquele momento, o imobilismo e o governismo, a CONLUTE representou, se não de fato, pelo menos em potência, a construção das lutas e a autonomia frente aos projetos do capital.

A impossibilidade de construção consequente de lutas por dentro dos fóruns da União Nacional dos Estudantes demonstra-se de maneira definitiva a partir da construção, em 2006, da Frente de Luta Contra a Reforma Universitária. Pela primeira vez os setores que romperam com a UNE e os que nela permaneceram, mas que tinham posturas táticas comuns, dentro de um espectro geral de oposição de esquerda ao Governo Lula, reúnem-se em um instrumento no intuito de construir lutas conjuntas.

A Frente de Luta demonstra-se capaz de impulsionar com mais força as lutas dos estudantes, o que resulta no processo de ocupações levadas à frente no ano de 2007. No entanto, suas limitações eram ainda mais fortes do que seus méritos. A Frente, mais do que qualquer outra coisa, demonstrou-se como um pólo superestrutural de organização. Seu funcionamento através do método do consenso, na prática, abriu margem para os mais diversos acordos entre as direções do processo, engolindo as minorias e mesmo os militantes de base. A própria CONLUTE não serviu para nada além de um suporte tático para a política do PSTU em suas tentativas de aproximação tática ao PSOL. A situação chegou ao cúmulo de reuniões do Colegiado Nacional da Coordenação serem convocadas para depois de plenárias da Frente, o que demonstra que a CONLUTE não poderia agir enquanto articulação real nestes espaços de discussão, mas serviria apenas para legitimar as suas decisões, ou levar às bases as propostas recusadas de sua majoritária (belo exemplo foi Plebiscito Nacional Sobre o ReUni).

Neste contexto, o debate que levava às bases a necessidade de ruptura com a UNE e de construção de um Movimento Estudantil renovado, foi engolido nos consensos politicistas da Frente. Isto acaba servindo para brecar, neste aspecto, o processo de reorganização que vinha tomando curso. Brecar, mas não interromper. Se algo ficou claro neste momento foi a contradição em que se meteram os setores da Frente de Oposição de Esquerda da UNE (FOE) ao continuarem legitimando a entidade, recusando um consequente rompimento com a mesma, ao mesmo tempo em que, pelas próprias implicações práticas da dinâmica do movimento, precisavam de um instrumento desvinculado de seu aparato para tocar suas bandeiras de luta.

A Frente se esgotou, consequência da própria limitação de seu método organizativo de curto prazo de validade. A contradição, porém, continuou. Durante os embates organizados no período de sua existência, em especial a luta contra o ReUni, a polarização entre Movimento e UNE demonstrou-se de maneira mais visível do que nunca. A UNE, durante todo o processo de mobilizações, jogou um papel de contra-movimento, boicotando e deslegitimando ocupações de reitoria, atos, manifestações e debates, chegando ao verdadeiro despautério de defender Reitorias e as mais diversas representações da burocracia estatal e universitária, contra os protestos organizados pelos próprios estudantes. Assim aconteceu em estados como Alagoas, Sergipe, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul etc., e nada foi mais eloquente do que o silêncio da entidade sobre a Ocupação da USP daquele momento.

Esta análise do que representa esta contradição, portanto, nos parece fundamental para uma avaliação do CNE, posto que alguns setores que o compuseram e construíram encontram-se imersos nesta situação. Por outro lado, seu peso relevante no processo de lutas faz com que o próprio Congresso Nacional de Estudantes tenha pendido para uma posição muito mais moderada em relação a esta questão do que o foi a Coordenação Nacional de Lutas dos Estudantes.

Da perplexidade geral: Rompimento com a UNE x construção da unidade?

É mais que evidente que o processo de reorganização não poderia se dar sem avanços e recuos em seu trajeto. Muito menos, poderia acontecer de forma absolutamente consensual entre as leituras e concepções que agem em seu contexto. É óbvio, também, que o novo sempre carregará traços da realidade antiga da qual “originou-se pelos flancos”. Uma das representações deste fenômeno, no contexto da reestruturação estudantil brasileira é a postura de setores que, apesar de carregar consigo uma leitura crítica acerca do papel da União Nacional dos Estudantes, não conseguem dar consequências a ela, mantendo-se dentro da entidade sob as mais diversas justificativas. Esta realidade é, até certo ponto, bastante previsível frente à perplexidade geral em que se encontram os movimentos sociais em seu todo, graças ao momento histórico de refluxo que se vive. Contudo, é preciso ter clareza suficiente para discutir os passos que se podem dar e os que não se podem dar neste contexto.

É necessário desmistificar o debate acerca da unidade do Movimento Estudantil. Para nós, este caminho se dá, unicamente pela discussão de qual unidade queremos e para quê ela deve servir. Assim, é importante que seja responsavelmente equacionado o debate sobre o que significa o divisionismo, hoje, no seio do ME e da reorganização do mesmo.

É certo e consenso geral de que os movimentos sociais existem para fazer a luta e organizar a resistência popular na defesa de seus direitos e na busca de maiores conquistas. Desta forma, o sentido próprio da organização política, seja em que nível ela se der, refere-se à necessidade de um posicionamento claro, dentro da luta política que se desenvolve em uma sociedade de classes. No caso de um ME que se pretende classista e combativo, este posicionamento encontra-se, obviamente, na trincheira da transformação desta sociedade. Assim sendo, fará sentido lutar a partir do momento que se luta por um objetivo claro: a superação do atual estágio de coisas. Por certo, as implicações concretas desta postura irão dar lugar aos mais diversos debates, sobre quais são os passos reais desta tal superação. No entanto, se há algo que deve ficar extremamente claro, é o nexo entre o discurso e a prática no âmbito de sua realização.

Assim, a unidade que se busca só se torna eficaz a partir do momento que está apta a oferecer um suporte concreto para as tarefas postas no caminho deste objetivo geral. A atual postura da UNE, de verdadeiro cão de guarda da política do capital para a educação, não permite nenhuma unidade possível com esta entidade. Em verdade, quando passa atuar do outro lado das trincheiras de luta é a União Nacional dos Estudantes, e não o movimento de reorganização, que inicia o processo de divisão do movimento. A unidade que se quer reconstruir, portanto, só pode se dar a partir de um programa que rompe, fundamentalmente, com aquele defendido pela antiga entidade dos estudantes. E, em consequência, através de uma ruptura com os métodos, concepções e fóruns que dão suporte a este programa: a partir da ruptura com a UNE no exato sentido que indicamos acima.

O processo de lutas de 2007 vem a tornar esta realidade ainda mais evidente do quê em 2003. Hoje, dificilmente os setores que rompem com a UNE são ainda acusados de divisionismo, a não ser pelas correntes mais fetichistas do Movimento. Esta postura deixou de ser vista como esquizofrênica e isolacionista por boa parte do ME para, em lugar disto, tornar-se tolerável e até discutível. Por sua vez, isto não significou o imediato convencimento destes mesmos setores de sua validade política.

Assim, é possível ver um debate de profunda crítica à estrutura atual da UNE ser construído sem ser seguido pelo rompimento com a mesma. A coisa toda vai tentar ser equacionada pelos mais diversos caminhos, dos quais o principal é o da disputa de concepções sem a disputa do aparelho no interior da entidade. Justificado por discursos que identificam “lutadores dentro e fora da UNE”, ou “estudantes com sincero ímpeto de luta que ainda se agregam em redor da UNE”, este debate vai procurando se manter aproveitando a confusão geral do Movimento.

Para tanto, claro, é preciso negar a visão global do contexto atual. Levantam-se frente a isto diversas questões. Afinal, qual o espaço privilegiado de disputa de concepções do Movimento Estudantil? Os espaços que se entendem burocratizados e fetichizados da União Nacional dos Estudantes, ou os fóruns criados no próprio processo de lutas, como ocupações de universidades, congressos e assembléias de entidades de base etc.? A importância desta disputa deve levar em conta se a energia gasta com a participação dos fóruns engessados da UNE vale a pena, na medida em que, apesar de contarem com a presença de milhares de estudantes que ouvirão sempre o discurso governista, eles não têm se revertido em força material no Movimento. Quer dizer, a UNE em geral, não tem conseguido mobilizar o corpo estudantil nem mesmo para a defesa de suas pautas, a não ser em casos excepcionais como em atos em seus próprios congressos e bienais, que contam com a reunião de pessoas de todo o país em um só local, trios-elétricos, muita animação e pouca pauta política. Ao invés disto, as salas de aula, os corredores e os pátios das universidades continuam tediosos e afligidos por um silêncio político mortal quase que perene.

No fim, nega-se a União Nacional dos Estudantes, mas não se dialoga esta negação com o único sujeito capaz de torná-la consequente e material: os estudantes. Se é preciso estar em todos os espaços, não é preciso (ou oportuno) romper com a UNE. E se não é oportuno romper com a UNE, qual o estágio da reorganização que se vê? O estágio anterior à própria negação do velho. Viver-se-ia então, um momento em que é necessário organizar a unidade do Movimento Estudantil, superar seus antigos obstáculos, resgatar suas verdadeiras bandeiras, negar a UNE, mas não o momento de oferecer alternativas para esta negação, que não necessariamente se sintetizam em uma agenda positiva para o ME. Ou seja, não necessariamente se resumem a fundação de novas entidades. Mas se realizam no processo de superação e abandono das atuais formas de movimento.

No fim, nega-se o debate de ruptura com a base do movimento, vendo-a como necessária, como vindoura, mas não a construindo no dia-a-dia estudantil. Ou seja, impossibilitando a tomada consciente, por parte dos estudantes, da negação do velho, e do despertar para a construção do novo. Agarrando-se a uma concepção vacilante do processo atual e, em últimas consequências, ignorando o peso político para a reorganização e para a própria UNE do que significaria a ruptura de mais estes setores com a entidade.

Por outro lado, e felizmente, não é a estes setores que se deve esperar. É à base estudantil que se devem explicações e respostas. E a necessidade de atendê-las exige um debate cada vez mais coerente e alinhado ao processo real. Construir a reorganização significa sim, portanto, construir a unidade do ME, mas apenas a partir de um programa que avance a consciência estudantil e impulsione sua luta. A UNE não pode acompanhar esta realidade e, por isto, deve, invariavelmente, ser deixada de lado. Discutir estas posturas, no entanto, como dissemos, é fundamental para discutir seu papel no CNE e na reorganização.

Do Congresso Nacional de Estudantes. Sua construção, suas cores políticas e seu decorrer.

Desde que se concretizou a ruptura com a UNE surge o debate de necessidade de construção de um novo instrumento de lutas, qualitativamente superior a ela, de uma nova entidade. Este debate, no entanto, é posto de maneira muito mais concreta a partir de 2007, como reflexo do processo de lutas que se dá naquele ano. A partir daí surge a necessidade de um fórum mais amplo do quê os que haviam sido construídos até o momento.

O CNE seria, desta forma, o primeiro espaço real de acúmulo construído no contexto da reorganização. Os Encontros Nacionais de Estudantes (ENE's) que aconteceram, apesar de terem servido como espaços de instrumentalização do movimento, não puderam, por seu próprio formato e duração, cumprir este papel. As tarefas postas para o Congresso envolviam, pois, o debate acerca de uma gama de temas que, muito além da necessidade de uma Nova Entidade, envolviam os princípios que norteavam a reorganização, seus métodos, bandeiras políticas, concepções de mundo, de educação e mesmo de ME. Avaliar este espaço, portanto, é julgar o atingimento destes objetivos.

Desde as premissas de sua construção, o Congresso Nacional de Estudantes buscou sempre demonstrar-se qualitativamente distinto do Congresso da UNE (CONUNE). Foi organizado a partir da convocação de plenárias abertas, nas quais qualquer estudante teria direito a voz e voto, podendo encaminhar proposta, fazer-se presente nas reuniões (ao menos em tese), e discutir os rumos estruturais e políticos que garantiriam o decorrer do Congresso. Em certa medida, inclusive, a CO do CNE serviu como esboço de aglutinação política, tomando posicionamentos, lançando documentos como moções de repúdio, boletins etc., e mesmo participando de atos e manifestações na tentativa de demonstrar uma alternativa de luta para o conjunto do ME.

Contudo, mesmo o caráter acessível da construção do CNE não o blindaria de equívocos. Evidente, também, que, apesar de sua postura aberta ou exatamente por isto, a CO não pode ser entendida como um espaço em que a construção conjunta tinha um papel maior do que a disputa de concepções que nela concorreram. Queremos dizer que, mesmo com seu caráter democrático, os equívocos que podem ser creditados às atitudes da CO não podem recair igualmente sob os ombros de todos os que tomaram parte em seus debates. Deve-se relacionar, fundamentalmente, a conformação política que a constituiu. Significa dizer, os erros cometidos nos fóruns da própria CO não deixam de ser erros de seus reais autores e passam à ser da Comissão de Organização do CNE, muito pelo contrário. Desta forma, há um aspecto que achamos de grande relevância. É necessário que se discuta em que termos se dá a clara hegemonia política do PSTU tanto nos espaços do CNE, quanto da própria Comissão que o organizou.

Como não pode ser negado, entre os setores que rompem com a UNE em 2003, o PSTU é aquele que, sem dúvidas possui o maior peso político deste processo. Não apenas por seu tamanho, e por ser talvez a única força, naquele momento, com proporções nacionais a fazer o debate da ruptura, mas também pela importância que teve como pólo de impulsionamento desta ruptura. É evidente que sem a participação de uma força política de tal porte o processo de reorganização encontrar-se-ia, ainda, em estado muito mais atrasado que o atual.

A hegemonia do PSTU foi, portanto, a representação de um aspecto natural da dinâmica que teve o processo de reorganização. Não há dúvidas, que o peso que esta força adquiriu neste contexto é qualitativamente diferente daquele mantido pelas forças políticas que se encastelam na direção da UNE, que, nem de longe, possuem uma sustentação real frente à base do Movimento. Ser maioria, contudo, não é apenas um êxito. Representa também uma responsabilidade redobrada com o processo que se desdobra sob sua formulação principalmente. E é neste sentido que afirmamos que os erros levados à frente pela CO do CNE têm um autor: sua majoritária, o PSTU.

Durante o decorrer do Congresso Nacional de Estudantes estes equívocos se demonstraram, como se pôde ver, reais e em sua face mais concreta. As reviravoltas na programação encerram o melhor exemplo do fato. Ainda nas reuniões de organização do CNE, a proposta apresentada pela majoritária foi criticada em seu conjunto, sendo pontuadas (inclusive por nós do Além do Mito...) a grande quantidade de mesas e painéis com que contava, restando pouco tempo para espaços de síntese real que eram os Grupos de Trabalho (GT's), ou mesmo de apresentação geral das teses que estariam inscritas para o Congresso. A única mudança essencial aceita pelo PSTU em sua proposta original foi a da retirada de um ato público que, em princípio, deveria acontecer na cidade do Rio de Janeiro durante duas horas, após a qual todos os ativistas nele presentes deveriam voltar imediatamente ao campus do Fundão e fazer parte de um GT de mais ou menos duas horas. O que simplesmente não aconteceria. Como era maioria nos espaços da CO, o PSTU consegue ter sua proposta aprovada.

Como não podia deixar de ser, o CNE ficou vulnerável a todos os remendos de programação possíveis, e o atraso inicial dá margem a vários acontecimentos difíceis de explicar. O primeiro deles é a inclusão de uma mesa de debates específica sobre a conjuntura atual da USP, que se aprovou, em plenária inicial (hegemonizada da mesma forma), de acontecer logo em seguida à mesa de conjuntura geral. É preciso refletir que uma mudança de programação que sirva para incluir um processo de lutas que eclode muito próximo ao Congresso não é um erro, mas algo que serve para deixá-lo em dia com a dinâmica real do Movimento. Porém, o que aconteceu é que se aumentou o tempo de mesas e impossibilitou-se a intervenção do plenário nestes debates. A surpresa foi ainda maior ao se descobrir, neste mesmo dia, que não havia qualquer atividade no turno da noite.

Ou seja, passou-se por um debate durante a plenária inicial em que as alternativas de inclusão do debate sobre a USP se colocaram todas para o mesmo turno da manhã. Depois, pelo que ficou caracterizado como uma “diferença de interpretações” das resoluções da plenária inicial, conclui-se que não haveriam GT's durante a noite deste mesmo dia. Ora, então por que a mesa da USP não foi simplesmente para o turno da noite? Ou melhor, porque a relutância tão grande em incluir este tema na mesa de conjuntura geral, restando tempo livre para as intervenções da plenária e para a realização de mais um GT durante a noite? No fim, a discussão de conjuntura não foi plena, assim como não o foi a discussão sobre a USP. Ao mesmo tempo os GT's se apertaram de uma maneira injustificada, mesclando-se a discussão sobre conjuntura e educação em um mesmo horário da programação, quando poderiam ter acontecidos duas reuniões do grupo: uma à tarde e outra à noite.

Deixamos claro que não fazemos esta discussão por um mero preciosismo de formas. Antes disto, esta discussão deve ser feita pelo fato de que, em questões de democracia, é comum que os meios representem um peso maior do que os resultados. Assim, é preciso ter claro a importância de cada espaço que deve estar presente em um encontro como o CNE. Os momentos de discussão privilegiados são, sem dúvidas, os GT's, que com seu formato permitem uma maior participação do conjunto de estudantes presentes no Congresso. Para além deles, os espaços de apresentação geral das teses que são inscritas para o Congresso (e que representam a construção política do mesmo) demonstram-se de grande importância para os debates. Sem espaços como estes, teses que contem com poucos participantes jamais conseguirão alcançar o conjunto de participantes do encontro. É evidente que uma tese que tenha dez delegados vai estar em muito menos GT's que uma tese que possua cem delegados. E isto é uma discrepância que merece ser atenuada em nome de um debate qualitativamente superior nos fóruns de organização do ME, onde a quantidade não deve ser imediato sinônimo de acerto de leitura conjuntural e coerência de concepções.

Levando isto em consideração, o decorrer do CNE se afigurou ainda mais equivocado no que se refere à programação. Na manhã do terceiro dia estava programada uma segunda atividade de apresentação das teses inscritas no CNE. Desta vez, diferente do primeiro momento que tomou parte na plenária inicial, seria o momento de uma discussão específica sobre o que cada uma apresentava em relação ao ME. Esta divisão de dois momentos distintos de apresentação das teses é, por si só, complicada. Seria muito mais bem aproveitado a soma dos tempos de ambas atividades em uma única, onde as teses pudessem ficar a vontade para tocarem sua apresentação destacando os aspectos que elas próprias julgassem mais importantes. Outro benefício seria o aproveitamento de mais este espaço (a manhã de um outro dia) para a organização de outras atividades. Esta proposta se demonstraria ainda mais viável se a programação do CNE não fosse tão carregada por mesas de debates.

A despeito de tudo isto, aproveitar o segundo debate de teses era fundamental para esclarecer o plenário sobre as posições que construíam o Congresso naquele momento. Contudo, mais este espaço foi suprimido. Mesmo tendo sido aprovado na plenária inicial do CNE, o debate de teses sobre o ME acabou, na prática, sendo substituído por um painel de histórico do Movimento Estudantil, que havia sido retirado da programação na mesma plenária. Então, o debate geral sobre ME foi substituído por uma apresentação (com fotos!) da história do famoso CONUNE de Ibiúna, uma discussão fundamental para o Movimento sem dúvidas, mas muito distante de ser prioritária em um Congresso que conviveu com atrasos em uma programação que já era pesada.

Ao término da apresentação, que durou quase duas horas, já ao meio-dia, a majoritária do CNE, em uma questão de ordem, propõe a supressão do debate de teses que estava originalmente previsto. Uma medida que serviu unicamente para dar ares de aceitação ao que já tinha acontecido. Afinal, ninguém na plenária poderia realmente tomar a escolha de manter o debate, o que prejudicaria o espaço prioritário dos Grupos de Trabalho que o seguiriam. A majoritária tem sua proposta aprovada pelo plenário em uma votação da qual nos abstivemos por ela não ter absolutamente nenhuma legitimidade. De quebra, na tentativa de conferir consequência à proposta, tentou-se encaminhar os GT's imediatamente após à votação, quando era mais que evidente que aquilo seria impossível em pleno horário de almoço.

Por fim, a programação do CNE contou com: uma mesa de abertura, uma mesa de conjuntura, três painéis simultâneos de educação, uma mesa de histórico do ME, uma mesa sobre a luta na USP, um espaço de saudações internacionais à plenária, um espaço de saudação do mov. Vamos à Luta (que continua construindo a UNE); uma plenária inicial com determinado tempo para apresentação de teses; dois GT's; e a plenária final. Com o detalhe de que todas as mesas acabaram sendo executadas sem tempo para a intervenção do plenário.

Como, em uma estrutura política como esta, poderiam ser sintetizados os acúmulos que o ME adquiriu durante o rico processo de reorganização pelo qual vinha passando? Mais do que isso, como os estudantes poderiam dar conta das tarefas práticas, mas também profundamente teóricas, de consolidar concepções de mundo, conjuntura, educação, movimento, métodos, princípios, pautas, bandeiras etc., em tal espaço? O Congresso Nacional de Estudantes não cumpriu nem uma ínfima parte das tarefas que estavam colocadas para o mesmo. E isto decorre do fato de que sua democracia interna encontrou-se profundamente prejudicada, especialmente no que diz respeito ao debate realizado durante o encontro, por equívocos que simplesmente não se justificam e que, em seu todo, representaram um completo desafino com o próprio acúmulo da parcela do Movimento Estudantil que construiu aquele fórum.

Da plenária final e da Assembléia Nacional dos Estudantes – Livre (ANEL).

Todo o processo narrado veio a desembocar em uma plenária final que, contando com os atrasos, com a dispersão geral dos presentes, com o debate prejudicado durante todo o encontro, e mesmo com as polêmicas que deveria superar, terminou por tornar-se conturbada e bastante diferente do que se poderia esperar. Sua deliberação mais polêmica e que, não apenas por isto, mas pela própria forma como se deu, merece um profundo balanço por parte do ME, foi aprovação da Assembléia Nacional dos Estudantes – Livre.

A ANEL, proposta do PSTU, através da tese Outros Maios Virão, pretende-se uma nova entidade estudantil. Suas tarefas, evidentemente, seriam as de organizar a luta dos estudantes, armá-los teórico-ideologicamente para as mesmas, combater alienação presente nos meios discentes, representá-los e unificá-los em torno de um programa que baliza-se pela aliança operário-estudantil e pela autonomia de seus fóruns (não apenas a governos, mas a organizações políticas em geral), como passos à construção de uma outra sociedade. Isto, claro, se ela se pretende uma alternativa real às antigas formas de movimento com as quais rompe. Ser a antítese do velho, por sinal, seria mais que um objetivo, seria quase sua própria essência. Como se deu sua construção?

A plenária final do CNE iniciou-se com a votação dos pontos consensuais em relação às pautas que tinham sido discutidas durante os GT's e nas próprias teses inscritas ao Congresso. Importante destacar, que estas propostas foram encaminhadas para o conjunto de estudantes que se fazia presente ali, como um programa para a reorganização do ME como um todo, e não de uma entidade ou instrumento qualquer. Estas deliberações, sem dúvidas, guardaram profunda importância, mas por sua própria natureza consensual, não poderiam ser tidas como decisivas para o desfecho da plenária.

Após estas deliberações foi apresentada, pelo PSTU, uma questão de ordem que, pelo adiantar da hora da plenária, e o receio de que esta fosse gradualmente esvaziando-se por acontecer no último dia de encontro, propunha o adiantamento da votação acerca da fundação ou não de uma nova entidade, antecipando-se às pautas não consensuais sobre conjuntura, educação, gênero e cultura. Em uma deliberação conturbada, esta proposta é aceita pela plenária. Ela, no entanto, merece, ao menos, duas reflexões.

A primeira, o que faz da deliberação acerca de uma nova entidade mais importante do que a de todos os outros temas do Congresso, que, inclusive, dariam forma ao próprio programa de uma possível entidade aprovada, ao ponto de que ela não poderia, de forma alguma, ser tomada em um plenário esvaziado, enquanto todas as outras poderiam?

É evidente, que a própria colocação de tal proposta demonstra quais as prioridades de quem a formula. A questão de ordem, apesar de aceita pelos presentes (sendo proposta da majoritária), foi simbólica no seguinte sentido: ao PSTU, mais do que qualquer outra coisa, importava o debate da fundação da ANEL. Importava tanto ao ponto deste preceder os debates centrais acerca do programa e das concepções que norteariam a reorganização do ME. A relação entre forma e conteúdo foi, portanto, completamente invertida e tudo isto devido a uma desesperada tentativa de conferir legitimidade (talvez com fotos de vários crachás levantados) a algo que, por certo seria aprovado no CNE, mas não necessariamente será aceito pela base. O instrumento, a entidade, se demonstrou mais importante do que o seu papel, as suas tarefas e o seu significado para o conjunto do Movimento e para o processo de reorganização.

A segunda questão é: a partir do momento em que é aprovada a ANEL, em que congresso estamos, no Nacional de Estudantes, ou no da nova entidade? Do nada, todas as propostas formuladas durante meses de debates entre os militantes de base do ME, dirigidas ao processo de reorganização passaram automaticamente a serem dirigidas para o programa de uma entidade legitimada, naquele momento, por apenas uma das dezesseis teses inscritas no Congresso. Saímos, quase que misteriosamente, de um congresso da reorganização, para uma discussão sobre quais seriam os próximos passos da ANEL. É certo que esta polêmica seria apreciada e haveria uma deliberação acerca dela, mas o instrumento adequado à execução de determinado programa só pode ser pensado a partir do momento em que o programa está claro para seus sujeitos. Na prática o CNE tinha metade de um programa para uma entidade inteira.

Não foi surpresa o resultado que se deu na plenária. Grande parte das teses que haviam sido inscritas ao Congresso declararam seu rompimento imediato com aquele espaço. Dentre elas, havia tanto posições que se alinham claramente à construção do processo de reorganização, negando completamente a UNE, quanto aquelas que ainda constroem esta entidade. A fundação da ANEL, pela forma que se deu, serviu para impulsionar o processo de fragmentação do movimento de reorganização ao invés de impedi-lo. A forma de todo equivocada como se deliberou acerca do tema abriu margem para as mais diversas avaliações oportunistas que se farão acerca do processo de reestruturação do ME, tentando igualá-lo, do seu início ao fim, à falida União Nacional dos Estudantes.

Serão, justamente, as perspectivas que não confirmam o rompimento com a UNE que ganharão mais espaço neste contexto. Enquanto a antiga entidade visivelmente não representa os estudantes e não pode acompanhar de maneira alguma os processos de luta que se darão, a nova, tampouco, surge como uma alternativa clara de superação das velhas formas e métodos de movimento. O que a ANEL não pode suprir, ainda mais com a marca de nascença que carregará indubitavelmente, é uma resposta para a crise de perspectiva geral pela qual passa o ME. A forma como foi construída (antes as formas, depois o conteúdo) acaba demonstrando que sua única pretensão é a de ser um novo instrumento para o velho movimento. Na verdade, precisamos de um movimento renovado, e não apenas de uma nova direção.

O que esperar, afinal?

Em diversos documentos do Grupo Além do Mito... e mesmo na tese e na pré-tese que construímos e assinamos para o CNE fizemos a discussão acerca do significado de uma nova entidade para o Movimento Estudantil neste momento específico. Para discutir os rumos do ME, no entanto, isto precisa ser retomado, ainda que de forma sintética.

Frente ao momento de refluxo geral em que vivem os movimentos sociais, testemunhamos uma profunda crise de consciência da classe trabalhadora. Ela não consegue dar uma resposta, enquanto classe, para os problemas que enfrenta. Não consegue, portanto, construir um projeto de sociedade alternativa à que está posta atualmente. Esta crise terá seus reflexos em todas as categorias sociais que poderiam lhe dar apoio em um possível movimento de ascenso. Dentre elas, os estudantes. Alinhado a isto, temos a traição das antigas referências das lutas populares, que se transformam em novas personificações do capital. Este processo se deu com a própria União Nacional dos Estudantes no caso brasileiro. Há, então, uma caducidade geral das velhas formas de se construir o movimento e o diálogo com as massas. Estas se encontram imersas em uma intensa alienação provocada pela atual forma de hegemonia do capital. Este contexto geral dificulta uma atuação frutífera junto a elas por parte dos setores sociais que estão à frente das lutas que contestam a lógica da ordem vigente. Dificulta, mas não torna absolutamente impossível.

Frente a esta realidade, os movimentos sociais buscam uma reorganização geral, que em períodos recentes se tornou a tônica no contexto brasileiro, mas acontece em todo o mundo. São novos partidos, centrais sindicais, estudantis, movimentos populares, que buscam atuar em um contexto de grande perplexidade da esquerda. O processo de reorganização existe objetivamente, e assim sendo, é necessário discutir quais são suas tarefas. É preciso ter clareza das tarefas da reorganização em um momento de refluxo.

No que diz respeito ao caso específico do ME brasileiro, uma nova entidade se torna necessária desde o momento em que a UNE se demonstra incapaz de tocar as lutas. Mas, como dissemos anteriormente, ela se torna imprescindível apenas na medida em que representa não apenas uma troca entre aparelhos, mas uma renovação profunda do próprio movimento que organiza. Isto só pode ser provido de uma única maneira: com um processo de reorganização profundamente enraizado nas bases.

É necessário que se precise o próprio significado disto, frente ao momento de refluxo pelo qual se passa. Ter um processo reconhecido na base estudantil não significará nunca que todos os estudantes do Brasil estarão, algum dia, sob a mesma bandeira. Isto jamais foi uma realidade, e pela própria natureza multifacetada da categoria estudantil, jamais será. No entanto, há a possibilidade real de que o processo de reorganização do ME se abra enquanto uma perspectiva a ser aceita ou recusada pelos estudantes. Isto é o que dá chão à discussão real com a base do movimento e à possibilidade de que esta venha constituir-se enquanto sujeito do processo, ou pelo menos seus setores mais avançados.

Esta não é a realidade atual do ME nacional. É evidente, que a UNE não se demonstra enquanto perspectiva para grande parte dos estudantes brasileiros. O setor do movimento que se aglutina em torno do processo de reorganização tampouco chega a representar isto. Antes, há uma apatia geral por parte do corpo estudantil, fruto da conjuntura geral de crise de alternativas pela qual se passa. A maioria não reconhece a UNE, mas, em verdade, sua grande parte não reconhece mesmo o Movimento Estudantil como um todo, sendo engolida pela reprodução cotidiana da forma de sociedade destrutiva em que vive.

Qualquer ato de construção do novo precisa, invariavelmente, passar pela consciência do sujeito desta construção. São os estudantes em sua atuação cotidiana, que podem pôr em movimento um processo de reorganização capaz de atingir seus objetivos essenciais e não a vanguarda do ME. Esta, contudo, terá a função imprescindível de tornar consciente cada passo dado pela sua base. E hoje, é importantíssimo tornar os estudantes conscientes do que significa, de todo, o não reconhecimento da União Nacional dos Estudantes que eles cultivam de forma quase que intuitiva.

Por isto, é precipitada a fundação de uma nova entidade enquanto tal. Pois a ausência da participação real e efetiva da base em seus direcionamentos, em um diálogo recíproco tanto com a vanguarda, quanto com a dinâmica dos processos de luta objetivos, joga um peso determinante no resultado final desta fundação. O momento em que se vive é, antes, o de cumprimento de tarefas negativas da reorganização. É necessário negar a União Nacional de Estudantes em seu conjunto completo e não apenas em seu aparato. Somente a partir daí é possível dar bases a uma discussão do que, realmente, representa o novo. Discussão esta que, exatamente por esta incapacidade de diálogo com as bases do Movimento se demonstra longe de ser vencida pela sua vanguarda.

Desta forma, a ANEL parece representar, e seria precipitado afirmar isto de forma conclusiva, um beco sem saída para a reorganização. Ela se demonstra superior à UNE apenas em seu programa geral. Em absolutamente nenhum outro aspecto, mesmo com toda a experimentação de métodos de organização que pretende levar a frente, ela se diferencia da velha entidade. A ausência da base real do movimento como uma sustentação indispensável para sua formação é que a joga neste isolamento histórico. É evidente que não se pode falar de impossibilidade absoluta de que esta entidade consiga superar este estado. Mas a que se reconhecer que as chances históricas disto acontecer não jogam a favor dela por tudo o que foi dito.

Isto se aprofunda com a análise dos marcos em que é fundada a ANEL. Na tentativa de aproximar os setores do PSOL que dialogam com a ruptura, e que já foram discutidos acima, o PSTU veio, ao longo do maturar de sua proposta, tornando cada vez mais tênue a diferença entre aqueles que rompem com a UNE e aqueles que não rompem. Mais uma vez, a discussão central volta a girar em torno, meramente, do programa do novo instrumento, e não de suas concepções fundamentais, a exemplo do que se passou com a Frente de Luta Contra a Reforma Universitária (ainda que de um patamar organizativo qualitativamente superior). Assim, é possível construir uma nova entidade alternativa à UNE, mas não profundamente antagônica a ela. Uma entidade de oposição de esquerda ao Governo Lula e à Reforma Universitária, mas que não rompe definitivamente com a perspectiva de movimento afirmada pelo velho e que, por isto mesmo, demonstra-se incapaz de dialogar este rompimento com os estudantes, torná-lo concreto e avançar a reorganização. E este é um limite fundamental para a ANEL.

Como dissemos no início, é evidente que qualquer conclusão, hoje, está ameaçada de mudanças por ser apenas preliminar e estar sendo construída no próprio calor da militância cotidiana. No entanto, frente às perspectivas apontadas, não se demonstra frutífero ao ME depositar suas esperanças na Assembléia Nacional dos Estudantes – Livre. Ela não demonstra ter condições objetivas de cumprir as reais tarefas postas para o processo de reorganização. Por esta razão, nós do Grupo Além do Mito... não construiremos a ANEL. Nem mesmo enquanto oposição interna, posto que a própria disputa do instrumento, quando feita da forma consequente, responsável e coerente que prezamos, é uma maneira de construção e maturação do próprio. Para nós, uma entidade tão afastada da base quanto é a ANEL não abre possibilidades para tal, ainda que as razões sejam qualitativamente distintas daquelas que imperam no interior da UNE. Continuamos fazendo a avaliação, que inclusive defendemos durante o CNE, de que atualmente é necessário para o ME um instrumento capaz de sintetizar os esforços da vanguarda estudantil em direção ao aprofundamento do processo de reorganização. Um instrumento que, não sendo uma entidade e arcando com os limites que isto traz, seja capaz de afirmar e dialogar com a base estudantil o cumprimento das tarefas negativas da reorganização. Ou seja, de aprofundar o rompimento com a UNE e tudo aquilo que ela representa para o ME, além de tocar as lutas estudantis do próximo período.

A resolução prática da tarefa de construção deste pólo de organização é algo que ainda precisará ser formulado frente ao contexto de fragmentação do qual se saiu do CNE com os rumos que tomou a plenária final do mesmo. Ao mesmo tempo, é necessário haver clareza no fato certo, e positivo, de que a ANEL irá organizar lutas importantes no momento em que se abre em nossa frente. Dialogar com esta realidade exigirá maturidade dos setores combativos que não a constroem. Será necessário reconhecê-la como uma possível aliança tática para os embates que virão. Isto não legitima seus fóruns, nem seus métodos, apenas reconhece o peso objetivo, no ME, dos setores que a compõem. Já construímos diversas lutas ao lado de setores que continuam reconhecendo a UNE, mesmo aqueles que sequer a criticam enquanto instrumento e perspectiva de Movimento. O mesmo acontecerá em relação à ANEL.

Estaremos dispostos a construir a luta com quem quer que seja a partir de uma unidade tática que tenha como suporte um programa que avance a resistência e a consciência estudantil. Estaremos ainda mais dispostos a nos incluirmos, dentro do alcance objetivo de nossas forças, na realização da hercúlea tarefa de reorganização do Movimento Estudantil. Mas isto se dará junto a uma intransigente convicção de que isto se faz pela base, nas lutas. E com a perspectiva de fundo de que reorganizar o Movimento Estudantil é, na verdade, organizar o desorganizado, não apenas oferecer algo pronto para quem não se encontra preparado para construí-lo. É dar corpo à afirmação do realmente novo e negar o velho, suas faces declaradas e todos os seus disfarces.

GRUPO ALÉM DO MITO...

Maceió, Julho de 2009.