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quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Crime, política e Movimentos Sociais

Por Eli Magalhães (acadêmico de Direito e membro do Além do Mito)
Postado em
Antes Quixote
Este texto reflete um posicionamento individual, o qual não é necessariamente o entendimento do grupo Além do Mito acerca do assunto.

Recentemente, tem crescido o número de notícias que tratam de conflitos envolvendo movimentos sociais e forças policiais. As últimas que podemos puxar da memória dizem respeito aos estudantes de Santos, desocupados pela polícia da reitoria em que se encontravam pacificamente, e a truculência com a qual a PM do Rio dispersou a manifestação contra a 10ª rodada de leilões das jazidas de petróleo promovida pelo governo Lula. É possível, ainda, citar outras ocasiões em que o Estado moveu-se contra os trabalhadores e estudantes que promoviam momentos de contestação neste ano. Como maior exemplo disto, lembremos da ação ajuizada pelo Ministério Público gaúcho contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

Estes exemplos constumam apontar tendências aparentemente gerais na disputa ideológica cotidiana. A criminalização dos movimentos sociais parte de uma articulação entre discurso e ação estatal na tentativa, não apenas de sua desarticulação política direta, pondo fim em suas atividades, mas, ainda, de legitimação desta desarticulação, seja ela tão truculenta quanto for. Ou seja, não basta simplesmente calar os manifestantes. Esta imposição do silêncio e do consenso deve, além de tudo, apresentar-se da forma mais aceitável possível, não importando os meios utilizados para tal.

De maneira muito introdutória, posto que não empreendi nenhum estudo mais sistemático acerca desta problemática, parece-me que o processo de criminalização dos movimentos de contestação da ordem seguem, em geral, dois passos: a) a construção de uma concepção que dá, ao crime, uma realidade natural e negativa; b) a identificação de qualquer atitude de contestação ou conduta desviante com atividades criminosas.

Em um primeiro momento, tenta-se, por todas as vias ideológicas disponíveis, construir-se a legitimidade da ordem vigente, abafando-se, ao mesmo tempo, quaisquer manifestações de dissenso. A criação de um clima de entendimento em torno das instituições postas envolve diversos aspectos desde a legitimação do sistema democrático burguês, das leis etc. Dentro deste espectro, é cada vez mais notável a intenção de conferir existência natural ao fenômeno do crime. Este passa a ser tratado como um ser que, existindo de forma independente, é evidentemente algo nocivo a qualquer organização societal.

Esta movimentação de legitimação da ordem possui, como um de seus momentos fundamentais, a legitimação da violência estatal. A organização da violência, em torno do Estado, é suprida, por um lado, a partir da aceitação do monopólio da força física nas mãos da institucionalidade, que deveria utilizá-la de maneira racional. Por outro, a deslegitimação do uso da força por outros pólos sociais. Com isto, o crime e a violência passam a constar como elementos sutilmente diferenciados. Não será negativa, por exemplo, a violência policial utilizada no combate ao crime, desde que racionalmente. Assim organiza-se o discurso do Direito Penal Liberal.

Mas o que é o crime, afinal? A própria teoria do Direito Penal pode dar contribuições iteressantes na resposta desta pergunta. O crime, em sua dimensão analítica, é uma figura jurídica constituída por três características, que, em um resumo um tanto deformador, são as seguintes: a) a tipicidade, adequação da conduta à proibição legal; b) a ilicitude, caracterização da conduta como contrária à proteção dos valores juridicamente assegurados; c) a culpabilidade, a capacidade jurídica que o agente deve possuir para o cometimento do delito, por exemplo, ser maior de 18 anos. Sem a conjunção destas três dimensões, a conduta não poderá ser considerada juridicamente como um crime.

Assim, no que diz respeito especificamente à dimensão da tipicidade, se o ato do qual quer-se discutir a natureza criminosa não se adequar inteiramente à conduta proibida pela lei penal, não haverá crime. Isto deve nos levar a uma reflexão mais profunda. Se apenas as condutas em contradição com a lei penal podem ser consideradas criminosas é necessário que seja discutida, para que seja encontrada a origem do fenômeno criminoso, a origem das próprias leis que o instituem. Ora, é imperioso perceber que, em ausência de leis penais que tipificassem condutas criminosas, não haveria nada a ser considerado crime. Em outras palavras, só existe delito onde existir direito que pronuncie o que é passível de ser punido pelo Estado.

Em contradição a esta análise da ciência penal, tenta-se criar uma espécie de aversão natural a qualquer coisa que apresente-se como crime. Esta é uma atitude que vem muito a calhar frente à necessidade de manutenção do status quo, visto que mudanças sociais radicais estiveram historicamente ligadas a uma contestação mais profunda da ordem tanto em sua dimensão política, quanto em sua dimensão mais marcadamente jurídica. É comum o discurso midiático que procura incentivar políticas de Lei & Ordem, do combate à criminalidade a qualquer custo etc. Eles baseiam-se, em última instância, na premissa, óbvia aos que proferem tal discurso, de que o crime é algo naturalmente ruim.

Mas se o crime existe apenas onde existem leis criminais, deve, então, ser posto o seguinte questionamento: de onde vêm as leis criminais? Ora, a pergunta é facilmente respondida. Elas vêm de onde vêm todas as outras leis. Do processo legislativo comum às democracias republicanas modernas. As leis são, em última análise, frutos de escolhas políticas instituicionais. Definem quais serão os fatos importantes para o Direito e, ao mesmo tempo, quais valores serão tutelados e garantidos pelo Estado.

Isto nos leva a um problema muito mais profundo. O Estado, em sua acepção moderna, e a cidadania, faces de uma mesma moeda, nascem junto aos valores que fundam a sociabilidade capitalista. Desta forma, como diria Engels, o Estado não é nada senão "o balcão de negócios da classe dominante". Desta maneira, os processos instituicionais aos quais estão submetidas as escolhas políticas da sociabilidade burguesa, ainda que possam, de forma contraditória, favorecer em determinada, e sempre limitada, medida as classes subalternas, nunca se colocará em declarada contradição com o fundamento último do sistema sócio-metabólico do capital. Desta maneira, o crime, assim como grande parte das outras leis, será uma escolha política, na maior parte das vezes tomada pelas classes dirigentes. O que significa dizer, o crime não é um fenômeno natural, e sim político. Mais, não será necessariamente algo nocivo à sociedade de maneira abstrata. Será algo nocivo à manutenção do cotidiano da sociabilidade em questão. Significa dizer: o crime em seus nuances mais ou menos contestadores da ordem vigente não é necessariamente nocivo aos seres humanos, apesar de poder sê-lo.

Vários episódios históricos nos trazem, hoje, personagens, muitas das vezes considerados heróis, que em sua época foram tidos e até condenados como criminosos pelo poder constituído vigente. Podemos citar Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Calabar, João Cândido, Carlos Prestes, Olga Benário, Graciliano Ramos etc., apenas para memorar alguns nomes da história brasileira. Ao mesmo tempo, não se pode esquecer que o Estado e a ordem jurídica que os considerou desta forma era tida tão legítima, à época, quanto a que vige atualmente.

Desta maneira, o crime será um elemento histórico, jurídico, político e social neutro. A classe dominante também é passível de ser considerada criminosa, apesar de episódios assim serem mais raros. Exemplificativamente podem-se citar a criminalização de condutas nazi-faccistas na maioria das democracias após a Segunda Guerra Mundial, assim como uma tendência atual à perseguição, ainda que somente jurídica, dos "crimes de colarinho branco". O fato real de que, no tratamento de delitos como estes, as instituições estatais são mais "frouxas" do que o normal é assunto para outro texto, já que aqui tento construir uma análise mais voltada para o fenômeno do crime em-si, e não do Estado e do Sistema Penal.

Tendo construído a imagem do crime como um elemento naturalmente nocivo passa-se ao próximo estágio da criminalização política: a tentativa de adequação de condutas dos movimentos de contestação a figuras típicas da lei penal. A tentativa de deslegitimação da contestação à ordem vale-se, como não poderia deixar de ser, da legitimidade constritora desta mesma ordem. A freqüente tentativa de identificação e rebaixamento de manifestantes e ativistas políticos a meros "vândalos" comuns é uma demonstração muito forte desta tendência.

Com isto, a ordem vigente beneficia-se, pelo menos, de três maneiras diferentes. Em primeiro lugar, encontra uma brecha legal, posto que o Estado de Direito Moderno só pode agir (publicamente) de acordo com a lei, para reprimir as manifestações mais radicais de descontentamento político. Em segundo lugar, valendo-se do construto da figura criminosa naturalmente nociva, desconstrói a legitimidade social que estes movimentos de contestação geralmente possuem taxando-os como violentos (já que apenas a violência estatal é legítima), ou seja, criminosos. Por último, esta identificação da ação política com a criminalidade comum, de massas, cotidiana, contribui para a constituição de uma prática criminosa docilizada.

A atividade política, por vezes, será realmente criminosa. Os momentos de maiores enfrentamentos históricos levaram a grandes desconsiderações e deslegitimações da ordem jurídica, fazendo com que atos políticos estivessem em pleno desacordo com as leis em vigor à determinada época. É o caso, por exemplo, mas não somente, de grandes revoluções políticas como a Francesa e a Russa. Rememore-se, também, as atividades de grupos de esquerda durante a ditura militar no Brasil com assaltos a bancos e seqüestros de figuras eminentes, assim como a tortura implementada pelas forças policiais da repressão estatal, que apesar de admitida jamais foi tida como lícita. Desta maneira, de formas variadas, a ordem vigente procurará, sempre, identificar esta forma de contestação política violenta à criminalidade comum.

Com isto, contribui-se para a criação e reprodução de uma criminalidade docilizada. Apesar de incômoda, a violência urbana cotidiana, na maior parte das vezes, não representa uma contestação mais sistemática ao status quo. Mesmo representando um fator de acréscimo do desconforto das civilizações modernas assaltos, seqüestros, o tráfico de drogas, homicídios etc., não questionam as bases reais do poder na sociabilidade vigente em sua centralidade. Para a classe dominante, é muito mais confortável que os criminosos estejam preocupados em assaltar bancos para consumir bens mercantis, do que para financiar atividades para-militares revolucionárias. Desta maneira, a identificação de atividades políticas radicais à criminalidade cotidiana, organizada ou não, presta um belo serviço no sentido de aprofundar, ainda mais, o caráter naturalmente nocivo do crime, em desconformidade com o seu caráter mais acentuadamente político.

Por esta tendência à tentativa de identificação de atividades políticas a atividades criminosas é que vemos situações como acusações de depredação de patrimônio público (crime de dano), desacato à autoridade e outros crimes comumente utilizados para legitimar a ação estatal sobre os movimentos políticos mais contestadores, mesmo quando estas condutas jamais aconteceram. Exemplo mais caricatural, foi a tentativa de indentificação, por parte do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, de escolas do MST a células de formação terrorista de crianças sem-terra.

Desta forma, estas considerações introdutórias apontam para algumas conclusões tão preliminares quanto elas. Em primeiro lugar, o crime não pode ser tratado como uma realidade natural independente. Esta postura, comumente utilizada no dicurso criminalizante atual, apresenta-se em total contradição com a própria Ciência do Direito burguesa, que propugna pelo reconhecimento jurídico unicamente daquilo que está posto enquanto direito na sociedade moderna. Tal discurso mais se parece com um retorno ao direito natural feudal e clássico, do que com o reconhecimento do direito positivo burguês advindo com a modernidade.

Não é, portanto, algo naturalmente nocivo, sendo fruto de uma escolha política, só podendo existir enquanto contradição ao direito. O que significa dizer que, de uma maneira geral, cai por terra a teorização de que apenas a violência estatal pode galgar de legitimidade. Não se quer com isto propugnar pela legitimidade jurídica da violência política. Muito menos afirmar que, apenas violentamente pode-se fazer política. Mas, apenas, afirmar que, ao longo da história, as mais variadas formas de atividade política chegaram, por diversas vezes, a encontrar pontos de intersecção com a violência, principalmente em momentos de rupturas políticas mais radicais. Ao mesmo tempo, o Estado e o Direito, como dois braços de um mesmo corpo tentarão manter a cotidianidade da sociabilidade vigente. Atividade para a qual, a criminalização dos movimentos sociais demonstra-se de importância capital.

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